Por: Ana Claudia Rebello – 18/12/2019
“-Como você está jovem! O tempo não passa para você!”
Toda vez que ouço isso, com falsa humildade, eu nego. Mas no fundo eu acredito e, não sei se por vergonha ou constrangimento, eu tento esconder o sorriso que insiste em denunciar o meu orgulho. A minha satisfação, no entanto, só dura breves segundos. Sim, somente o intervalo de tempo que levo para ouvir a voz do meu passado, que – rabugento e hostil – me aponta e me diz: “- Não se iluda, o tempo passa sim.”
O tempo passa sim e, de repente, um monte de coisas que eu não fiz passeia pela minha timeline imaginária e as imagens projetadas – como em uma tela em 3D – reclamam as oportunidades que eu perdi e que já não voltam mais.
Eu vejo nitidamente o job experience que eu nunca fiz em uma lanchonete localizada em uma pacata cidade no interior dos Estados Unidos. Chego a sentir o peso na bandeja dos lanches que eu nunca servi, achando que me caiu bem o avental que não experimentei. Consigo ver a luz que entra pelos vidros, as mesas junto às janelas, os cardápios plastificados e até mesmo as cores do nada discreto slogan em laranja e azul anil, já desbotadas pelo tempo da minha imaginação.
Vejo também as minhas inúmeras passagens por albergues fervilhando de jovens de vários países, onde eu troco experiências de viagens sobre lugares que eu nunca cheguei a conhecer. Não posso contar os detalhes dos romances inesperados e incríveis vivenciados nessas viagens juvenis e que agora vejo passar pela minha tela, porque, infelizmente, não os vivi.
Consigo sentir o cheiro dos churrascos da Faculdade de Direito, aos quais, apesar de convidada, eu nunca pude ir, das conversas animadas, dos afetos e dos abraços que eu não pude ter ali.
Vejo um carro cheio de tralhas, com música alta, pegando a estrada para acampar nas praias de areia clara e fina de regiões que não cheguei sequer a visitar.
Por encanto, volto à infância e vejo as divertidas piruetas que eu faço com os tão sonhados patins, prometidos de natal pelo meu pai, os quais eu nunca cheguei a receber. Ah, e o quanto eu desejei esses patins!
As imagens não param por aí, se alternam com tantas outras e juntamente com elas uma sensação dolorosa por tantas experiências que se perderam em um espaço de tempo que já não se pode acessar.
Às vezes vem alguém e me diz: “- Vai lá e compra uns patins!”
Mas não é disso que se trata. Aquela menina que acampava na tela imaginária em 3D não é a mesma mulher que vos fala agora. Hoje sou outra. O que eu realmente sinto falta não é do job experience, dos albergues, dos churrascos, da praia, das cabanas, dos patins. Tudo isso está por aí hoje em dia, aos montes, tropeça-se neles.
O que eu sinto falta é do significado de poder ter vivido todas essas coisas naquela época, de ter essas lembranças catalogadas na memória da minha existência, de ter essas histórias antigas para contar para os meus filhos. Mas o fato é que não foi possível viver isso naquele momento, ficando alguns vazios no meio do caminho.
Mas a vida é assim mesmo, como um pano costurado em tricot, é feita de pedaços preenchidos, mas também é feita de vazios. Vazios não são em vão. Vazios nos constituem, falam de nos, têm sua função. E, no final, cada um de nós tem que se haver com eles, dar-lhes um propósito.
E o que eu faço com eles? Ah, eu uso esses vazios como guias, como um farol, como lembretes de que o tempo passa sim, de que há que se viver o hoje, aproveitar as oportunidades, abrir caminhos, viver o novo, ser quem eu quiser ser, como eu quiser ser.
Meus gostos agora são outros. Os vinhos que eu degusto, as risadas que eu escuto, os abraços que eu dou e recebo, as coisas que eu estudo, as mensagens que eu escrevo, os beijos eu que roubo, os afetos que eu construo, tudo isso é o conteúdo vivido no meu “aqui e agora” e os extraio desde já das telas imaginárias dos momentos não vividos, que assistirei no meu futuro senil.
O tempo passa sim e deixa vazios. E você, o que vai fazer com eles?
Ana Claudia Rebello
Imagem: Pixabay – sparkler-677774_1920